sexta-feira, 8 de outubro de 2010

     
        Fundamentalismo nas eleições 


Uma eleição presidencial em um país com as dimensões, complexidades e problemas do Brasil merecia uma agenda de debates de melhor qualidade. Intoxicado pela estratégia do lulopetismo de tornar as eleições plebiscitárias — “Lula contra FH”, sem que nenhum dos dois tenha nome e foto na tela da urna — , o pleito terminou mediocrizado, nivelado por baixo, campo fértil para táticas de marquetagem política.

Não fosse o lançamento da candidatura de Marina Silva, com uma proposta a salvo do
maniqueísmo implícito na ideia do plebiscito, não haveria este saudável segundo turno,
uma chance para que, em pouco mais de 20 dias, Dilma Rousseff e José Serra se mostrem como são, defendam propostas claras, não demagógicas e realistas sobre temas estratégicos (saúde, educação, impostos, por exemplo). Infelizmente, a forma como se encerrou o primeiro turno lança sérias dúvidas sobre a discussão no segundo tempo da disputa.

A conclusão de que um fator decisivo na migração de votos de Dilma Rousseff, de formação de esquerda, para Marina Silva, militante verde e evangélica, e que teria viabilizado o segundo turno, foi uma mobilização quase subterrânea de grupos religiosos antiaborto ameaça estreitar ainda mais o campo de enfrentamento de ideias e propostas entre os dois candidatos finalistas.

Se Serra, ao escapar da esperada derrota definitiva no primeiro turno, voltou à luta destacando a política ambiental da sua gestão no governo de São Paulo, Dilma Rousseff recomeçou a campanha com citações do nome de Deus e negação da tese da descriminalização do aborto, já defendida por ela publicamente, assim como por seu partido, o PT. Resvala-se para o perigoso terreno da hipocrisia e, pior, deixa-se que um condenável fundamentalismo religioso defina o tom do segundo turno.

Dilma, na verdade, não é vítima de qualquer difamação, pois há registros de sua defesa da descriminalização do aborto — permiti-lo em circunstâncias objetivas e especiais, além da gravidez decorrente de estupro, como prevê o Código Penal. Mas o código criminaliza, em geral, a interrupção da gravidez, e por isso é defendido de maneira feroz por grupos religiosos conservadores.

Sequer admitem o aborto quando a vida da mãe corre riscos. Recusam-se a perceber o aspecto nítido de saúde pública existente no tema. Não se comovem nem com o fato de complicações decorrentes de intervenções malfeitas em clínicas clandestinas serem uma das mais importantes causas de mortes maternas.

Agiu de maneira correta o ministro da Saúde José Serra quando, em 1998, contra a ação deste mesmo lobby que se movimenta na campanha, emitiu nota técnica ao SUS para regular a curetagem em mulheres vítimas de estupros, como determina a lei. Mesmo assim não se livrou de críticas.

É risível a candidata Dilma Rousseff assumir um discurso conservador contra o aborto, depois das entrevistas que deu e pronunciamentos que fez em sentido contrário. Soa falso.

Melhor os dois candidatos estimularem uma discussão séria e sincera — até para além da eleição — sobre assunto tão grave para as mulheres, principalmente as de baixa renda e instrução, a grande maioria delas.

Curvar-se a este fundamentalismo é trair o princípio da laicidade do Estado, uma conquista do Iluminismo, em um lance de esperteza eleitoreira.

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